Cantando História

A música popular é uma rica fonte para entendermos a cultura popular e desvendarmos alguns fatos poucos esclarecidos.

Eu não matei Joana D'Arc!

Autor:

Gustavo Mullem / Marcelo Nova

Tema:

A guerra dos 100 anos entre Inglaterra e França

Eu não matei Joana D'Arc!

Quem matou Joana D'Arc? Você pode até não saber dizer quem foi, mas com certeza sabe como ela morreu. Bigmouth strikes again, aquele hit dos Smiths, de 1986, já dizia: agora eu sei como Joana D'Arc se sentiu / enquanto as chamas subiam ao seu nariz romano / e seu walkman começou a derreter (now I know how Joan of Arc felt / as the flames rose to her roman nose / and her walkman started to melt). Mas a canção de Marcelo Nova é taxativa: não foi ele quem matou Joana D'Arc. E, se não foi ele, quem foi?

Numa letra cheia de ambiguidade e humor, misturando elementos próprios da guerra fria na mesma linha (agora eu tô entregue / à CIA e à KGB / eles querem que eu confesse / mas eu nem sei o quê),  Marcelo Nova, bem ao estilo debochado que o consagrou,  tira o corpo fora, como se estivesse sendo acusado, num inquérito.

O autor  nos dá algumas pistas que ajudam a entender quem foi a Donzela de Orleáns.

Ela me falou / que andava ouvindo vozes (…)

Joana D'Arc nasceu em 1412, filha de camponeses que viviam na região da Lorena, na França, em plena Guerra dos Cem Anos, uma série de conflitos entre franceses e ingleses pela disputa de territórios na França, em especial o Condado de Flandres, comercialmente estratégico, que durou de 1137 a 1453..

A juventude de Joana é marcada pelo fervor com que se dedica à fé católica e por  volta dos 13 anos começa a escutar vozes, acompanhadas de luzes e visões, que ela identificou como sendo aparições de São Miguel Arcanjo e Santa Catarina de Alexandria, lhe trazendo recados sobre uma missão que deveria realizar: libertar Orleáns dos ingleses e ajudar Carlos VII a se tornar o rei da França.

Na época a França passava por uma situação política muito difícil; duas facções poderosas estavam em guerra, os Armagnac, que apoiavam a família real dos Orleáns e os Bourguignon, favoráveis aos ingleses.

Para piorar um pouco mais, o rei francês Carlos VI assinou, em 1420, o Tratado de Troyes, deserdando o herdeiro do trono da França e nomeando como seu sucessor o monarca inglês Henrique V. Só que, logo em seguida, morrem ambos; o rei inglês Henrique V em agosto e o rei francês Carlos VI em outubro de 1422.

Henrique VI da Inglaterra, com apenas 10 meses de idade foi coroado rei da França em outubro de 1422, em Paris. Os Armagnac, que não aceitaram ser súditos do pequeno bebê inglês declararam seu apoio a Carlos VII.

“Vim conduzir os seus exércitos à vitória”

Aos 16 anos, Joana D'Arc consegue chegar à cidade de Vaucoleurs e  pedir para ser apresentada a Carlos VII, dizendo ter  uma missão que considerava divina.

O que parecia impossível aconteceu: o herdeiro do trono disse que a receberia mas, desconfiado, resolveu testar Joana  e se misturou a outros homens do seu exército. Joana D'Arc, que cortara os cabelos bem curtos e vestira roupas masculinas, não só teria identificado o delfim como se colocado diante dele, dizendo “senhor, vim conduzir seus exércitos à vitória em Orleáns”. Surpreso e também desesperado, sem alternativas diante do domínio inglês, Carlos VII confia à Joana D'Arc um estandarte, com uma cruz e os nomes de Jesus e Maria, uma espada, uma armadura e um exército – não sem antes colocar a moça para conversar com teólogos de sua confiança e solicitar uma comprovação de sua virgindade, uma forma medieval de medir “pureza” ou “valor” da missão divina afirmada. Daí decorre um de seus famosos apelidos, pucelle, que em francês significa donzela.

Não se sabe com exatidão sobre as funções desempenhadas por Joana D'Arc no exército do delfim, mas é certo que ela participou ativamente nas tomadas de decisão dos ataques, sugerindo estratégias que eram acatadas por homens que tinham mais que o dobro de sua idade e larga experiência militar. Ferida em combate, seguiu firme, o que encorajou os demais soldados. Em uma semana, o cerco a Orleans foi rompido e a cidade ficou  livre dos ingleses e dos borguinhões, que recuaram diante dos avanços franceses, o que contribuiu para criar uma aura de milagre ao redor de Joana D'Arc.

Ela me falou dos seus dias de glória / e do que não está escrito lá nos livros de história

Joana, então, escolta o delfim até Reims, onde ele é coroado rei da França, em julho de 1429. Carlos VII, coroado, se via em posição mais confortável politicamente, fortalecido diante dos ingleses.

Bom, o que mais faltava agora? Carlos VII precisava de Paris e, secretamente, negociava com os ingleses para não ser surpreendido por um ataque enquanto seguia rumo à capital francesa. O Duque de Borgonha, aliado dos ingleses, aproveitou o clima de trégua para fortificar suas defesas na capital, surpreendendo a comitiva do delfim. O exército francês acaba se rendendo e Carlos VII tenta negociar um novo acordo com os ingleses. Sem tropas, mantimentos e armas, Joana D'Arc decide, mesmo assim, continuar lutando contra os borguinhões e ingleses que defendiam Compiègne, a 80 km de Paris. Mesmo diante dos alertas das vozes, dizendo que aquilo não daria certo, ela prosseguiu e acabou ferida e capturada, em maio de 1430, pelas forças dos ingleses e borguinhões. Carlos VII nada faz para resgatá-la, buscando não se indispor com os ingleses. Joana foi  levada para julgamento em Rouen, por acusação de heresia e questionada pelas autoridades eclesiásticas por seu cabelo, cortado curto, e por usar trajes masculinos. Condnada à morte e Joana foi queimada viva em praça pública, na Place du Vieux Marché, Rouen, em 30 de maio de 1431.

A igreja católica não demorou muito a se arrepender do que havia feito à Joana D'Arc, considerando seu processo ilegal já em 1456, por determinação do Papa Calisto III. No séc. XX ela foi beatificada e, em seguida, tornada santa e, além disso, padroeira da França.

Uma rede internacional / iludiu aquela menina / prometendo a todo custo / transformá-la em heroína

Pesquisadores contemporâneos, com apoio de neurologistas, sugerem que Joana D'Arc foi provavelmente era esquizofrênica, o que poderia explicar, assim, a ocorrência das visões e vozes constantes em sua adolescência. Sua ascensão e todo o culto à sua imagem e seus feitos, tidos como símbolos franceses, expressam também as tendências ao misticismo e ao nacionalismo – este, uma marca de nascença dos estados modernos centralizados que dominariam a Europa ao longo do século XV.

Mesmo com todas as controvérsias  quanto à trajetória de Joana D'Arc, podemos ao menos refletir o quanto já era difícil, para uma mulher, simplesmenre existir, no final da Idade Média. Joana D'Arc foi crucial para um desfecho favorável aos franceses na Guerra dos 100 anos, mas será que toda a injustiça que sofreu em seu processo, acusada de heresia e bruxaria, teria ocorrido se se tratasse de um homem?

Marcelo Nova e o Camisa trouxeram, de forma bem humorada, com essa música, a chance de entendermos um pouco sobre um mundo e valores que deixaram de existir há muitos séculos, mas que talvez guardem, infelizmente, algumas afinidades com a contemporaneidade.

Talvez sejam muitas mais as Joana D'Arc hoje em dia, em busca de liberdade. Cabe nos perguntarmos: quem as segue matando?

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